Agricultura orgânica, um novo caminho para o Brasil?

Desafios e oportunidades para a ampliação das práticas de agricultura orgânica e sustentável
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É muito bom quando a gente olha para trás e consegue conectar vários pontos. Melhor ainda quando a gente olha para frente e acredita que é possível fazer diferente, fazer melhor. Nessa hora é preciso ter uma visão muito clara para conseguir engajar outras pessoas e, então, poder sonhar juntos.

A história da Flourish está muito ligada à produção de alimentos. Por isso decidi explorar as possibilidades da agricultura orgânica no Brasil. Produzir alimentos em larga escala, de forma sustentável, é um tema que sempre me fascinou. Por outro lado, entender as razões de um país como o Brasil não ser um dos protagonistas nessa área também me intriga. Apenas 0,3% da área total plantada brasileira é dedicada à prática de agricultura orgânica, cerca de quatro vezes menos do que a média mundial.

Convencido de que uma nova realidade pode existir, decidi me mover e sair em busca de especialistas e de conteúdos relevantes sobre esse tema e, então, mapear os desafios e possíveis soluções para ajudar a materializar a visão de um Brasil que se destaque na produção e no consumo de alimentos orgânicos. E, mais do que isso, compartilhar essa jornada por meio de textos como esse e também usando outros canais e linguagens.

O impacto ambiental da produção agrícola já estava diante dos meus olhos quando fundei e empreendi uma empresa de controle biológico chamada Rizoflora. O que fez meus olhos brilharem quando conheci o professor Leandro Grassi, do Departamento de Fitopatologia da Universidade Federal de Viçosa, foi o potencial de alcance ambiental – de impacto positivo – que seu conhecimento representava. A jornada foi muito mais longa e desafiadora do que eu esperava – até escrevi um livro para refletir e processar os aprendizados –, mas o que vale mencionar aqui foi a minha surpresa com a baixa receptividade do benefício ambiental que o produto que estávamos desenvolvendo trazia para produtores alarmados com as perdas causadas por uma praga agrícola. Todos queriam uma solução, tanto fazia se fosse de origem natural ou biológica. No entanto, para a grande maioria desses produtores importava apenas a produtividade, ou o retorno financeiro, da próxima safra. Quando eu falava sobre as vantagens do nosso produto, tanto no aspecto ambiental como no social, eu era pouco escutado – muitas vezes era ignorado.

Em paralelo, os números da produção e consumo de produtos orgânicos já atingiam patamares consideráveis no mundo. O mercado mundial de produtos orgânicos que era de US$ 17,9 bilhões no ano 2000, passou a ser de US$ 89,7 bilhões em 2016, representando um crescimento médio anual de mais de 10%. O entusiasmo por um modelo de produção no campo que respeitasse o meio ambiente parecia ganhar força. Entretanto, como mencionei antes, não era isso que eu presenciava quando ia à campo no Brasil.

Aqui, no entanto, vale uma ressalva! Houve apenas uma exceção na minha experiência na Rizoflora. Foi quando tive contato com a maior empresa da área de produtos orgânicos do Brasil. Para minha surpresa, seu agrônomo me disse que não tinha problema com a temida praga agrícola para a qual oferecíamos a solução. Eu me senti realizado mesmo sem poder abrir, a partir daquele contato, uma nova frente comercial. “Um terreno rico em matéria orgânica, cheio de inimigos naturais da praga”, essa era a explicação mais plausível segundo meu amigo e sócio, professor Leandro Grassi.

Alguns anos se passaram e eu conheci a Cooperativa de Café dos Costas, que reúne produtores de cafés especiais certificados Fair Trade, localizada na cidade de Boa Esperança, sul de Minas Gerais. O testemunho dos fundadores desta cooperativa, que se empenharam em conscientizar pequenos produtores da região da Serra da Boa Esperança sobre o uso de agrotóxicos, era algo que eu, até então, não havia presenciado. Em sua abordagem, a cooperativa criou um programa de saúde que, dentre outras ações, avaliou a presença de vestígios pesticidas no sangue dos produtores. Por meio de amostras de sangue conclui-se que cerca de 15% dos produtores apresentavam níveis altos de substância tóxicas contidas em pesticidas comercializados na região.  

Passada essa fase inicial de uma conscientização profunda, a cooperativa estruturou um plano financeiro de transição para agricultura orgânica. No início 16 produtores aderiram àquela jornada. Os benefícios desta transição puderam ser sentidos no bolso dos produtores já no terceiro ano. O caso da Cooperativa de Cafés Especiais dos Costas será aprofundado pela Flourish em uma das próximas publicações.

Somado à essas experiências no campo, em áreas importantes de produção agrícola no Brasil, em outras duas ocasiões, quando eu estava morando nos Estados Unidos, pude conhecer histórias e casos que também me sensibilizaram. Um deles foi o da empresa que veio a ser a maior produtora de iogurte orgânico dos EUA, a Stonyfield Farm. Adquirido pela Danone há pouco mais de uma década, este famoso laticínio começou como uma escola para produtores de leite orgânico na região de New Hampshire, estado que faz divisa com o estado de Massachusetts. Seu empreendedor, Gary Hirshberg, é um sonhador e realizador de alto impacto. A história da agricultura orgânica nos EUA reconhecerá para sempre seu legado. 

Outra história inspiradora é a da Green Mountain Coffee Rosters, ainda antes de ser adquirida e participar de um ambicioso projeto de fusões e aquisições, impulsionada pelo lançamento de sua máquina de café em cápsulas, a Keurig, que chegou a atingir a marca de cerca de 50% de compra de cafés orgânicos de diversas regiões do mundo. Como histórias de empresas assim podem existir no Brasil? E quais são as nossas empresas e empreendedores que já caminham nessa direção? São histórias que a Flourish quer chamar a atenção.

Hoje, passando uma nova temporada nos EUA, em uma parceria com meu amigo Daniel Ross, fundador da DAISA Enterprises, tenho testemunhado algumas experiências de modelos de produção sustentável e de consumo de produtos saudáveis. Projetos comunitários que faziam parte de um movimento silencioso foram mapeados e passaram a ter um nome: EFOD, Equitable Food Oriented Development – uma estratégia de desenvolvimento que utiliza a produção de alimentos e a agricultura para criar oportunidades econômicas e procura explicitamente construir ativos, gerar orgulho e empoderamento das comunidades diretamente envolvidas na produção de alimentos. Será que aqui no Brasil, também não deveríamos reconhecer e valorizar os ecossistemas de “Desenvolvimento Agrícola-Alimentar Sustentável e Socialmente Equitativo”? E aqui socialmente equitativo significa que o alimento saudável é economicamente acessível, deve ser produzido de forma justa, gerando riqueza naquelas comunidades que se dedicam a essas atividades, e cuja produção preserva os aspectos culturais relacionados a formas de produção e de consumo desses alimentos.

Ainda no contexto internacional – e isso também para ser melhor explorado em próximas discussões – é fundamental refletir sobre uma tendência que aparece em primeiro lugar na lista do Whole Foods, rede de varejo que desponta como um dos principais formadores de opinião sobre consumo de alimentos orgânicos nos EUA e talvez no mundo. Esse varejista, que ajudou dar nome ao movimento capitalismo consciente, apontou o consumo de alimentos produzidos a partir da chamada “agricultura regenerativa” como a principal tendência de consumo em 2020. A agricultura regenerativa se baseia em práticas capazes de reconstituir solos degradados, aumentar a biodiversidade e capturar carbono. Tudo isso com objetivo de criar benefícios ambientais duradouros. Se o consumo de alimentos produzidos dentro desse modelo é uma tendência, que oportunidades podem surgir para o Brasil na área de agricultura orgânica e em agroecologia?

Outras andanças, encontros e alguns mergulhos me ajudaram a entender melhor esse modelo de produção agrícola. Entretanto, grandes questões ainda seguem sem resposta: Por que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, com cerca de 20% de tudo que é aplicado no mundo? Por que nosso modelo de produção agrícola privilegia – ou continua a privilegiar – a produção de alimentos que serão negociados na forma de commodities enquanto há enormes oportunidades de diferenciação e resgate do valor intrínseco do que é o alimento produzido com práticas mais sustentáveis? Por que o Brasil não ocupa uma posição de destaque no contexto da agricultura orgânica, pelos menos em linha com sua relevância internacional no agronegócio?

A lista de perguntas é extensa e certamente não se esgota aqui. Profundamente estimulado por esse desafio, eu senti o chamado para contribuir com a solução. Uma das propostas nesse sentido é trazer nas próximas publicações da Flourish alguns dos melhores diagnósticos sobre esse problema, bem como as possíveis soluções para que o Brasil possa fazer uma transição para uma agricultura mais sustentável e para um modelo que possibilite a geração de riquezas em mais de uma dimensão.


E já estamos em 2020. Não há como ignorar que a produção de alimentos afeta e é afetada pelas mudanças climáticas. Se quisermos incluir essa discussão dentro do contexto necessário dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que estabelece uma série de metas para 2030, temos que considerar que qualquer mudança que possa proporcionar resultados relevantes precisa acontecer a partir de agora! 


Em uma recente entrevista, a autora do best-seller Diet for a small planet, livro de 1971 que já falava do impacto ambiental da criação de animais para consumo humano, Moore Lappé, definiu bem um sentimento importante para nossos dias na Terra [tradução livre]:

“Eu não sou uma otimista. Eu sou uma ‘possibil-ista’. Nós humanos precisamos tanto de um propósito e sentido [na vida] que não temos que ter uma certeza sobre o resultado. O que nós precisamos é de ter um senso de possibilidade (…) Algumas vezes apenas temos que ir em direção, sem tentar medir tudo. (…) Nós nunca estivemos aqui antes, nunca enfrentamos a ameaça das mudanças climáticas. Também nunca tivemos esse potencial de comunicação e tanto conhecimento disponível. Então não é possível saber o que é possível”.

“(…) I am not an optimist. I am a possible-ist. We humans are so in need of purpose and meaning that we don’t have to have certainty of outcome. But we do have to have a sense of possibility. (…) sometimes you just have to go for it and not be so measured. (…) We’ve never been here before. We have never faced that existential threat of climate change. We’ve never had the level of communication and knowledge is available. (…) So, it’s not possible to know what’s possible”. Fonte: The New York Times Magazine, 22/Dez/2019, p. 15

Por fim, compartilho uma imagem que me move e me ajuda a dar realmente sentido ao meu cotidiano urbano da maior parte dos que irão acompanhar esta nova série de publicações e discussões da Flourish a partir deste ano. Toda vez que consigo estar junto à natureza, próximo à uma nascente d’água e de comer alimentos colhidos no pé, me sinto a pessoa mais rica do mundo. E acredito que este sentimento é compartilhado por muitas pessoas. É esta visão que a Flourish, com humildade, pretende ajudar a multiplicar.

CRÉDITOS | Redação: Gustavo Mamão e Patrícia Mariuzzo | Revisão: Patrícia Mariuzz | Imagens: Bárbara Xavier

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10 Comentários
  1. Muito bom, entender visões diferentes de um ponto tão importante como agricultura orgânica é sempre válido. Os ODS seriam como um norte, um grande passo para o avanço mais sustentáveis da humanidade. Porém, se houve pouca falar desses Objetivos. Pela mídia, pelo Governo, pelas empresas. Ótima leitura.

    1. Pois é, Gustavo! Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma tentativa para que possamos ver o desenvolvimento sob várias óticas. O crescimento do PIB já não vai nos levar para um melhor lugar do que estamos hoje. Vamos continuar falando daquilo que podemos fazer para avançar, principalmente, com os ODS #2 e #12. Continue acompanhando!

  2. O desafio de transformação é tão grande quanto o mercado a atingir. Trabalho admirável e com muito propósito.
    Um abraço e precisando, conte comigo.

    1. Obrigado meu amigo, Bruno Henrique! Gostei demais da sua síntese: tamanho do desafio igual ao tamanho da oportunidade! Se soubermos o que mais podemos fazer pela agricultura orgânica talvez possamos ajudar muitos a trilharem este caminho!

  3. Prezado Gustavo, sua contribuição será imensa no sentido de um despertar dos produtores e consumidores brasileiros, particularmente as instâncias governamentais, para um “olhar orgânico” – no sentido estrito e amplo da palavra – do agronegócio, então revertido em “agrodegustação”. Seus artigos, sempre bem talhados e fundamentados, terão um sabor pioneiro que o futuro há de reconhecer, não obstante a lassidão dos hábitos mentais e pragmáticos arraigados entre nós brasileiros, ante o novo florescente.

    1. Obrigado, Brother! Compartilhamos da visão do alimento saudável e dos cuidados necessários com o Planeta. Gratidão pelas palavras.

    1. Obrigado, Ana! Espero que você e o João possam acompanhar os próximos passos desta história!

  4. Bom dia!

    Sou sócio da Fazenda Mabela (@fazendamabela no Instagram).

    Ainda somos pequenos, mas compartilhamos do propósito de uma produção de alimentos que vai além do orgânico e possa ser um elemento de transformação do mundo.

    Vamos acompanhar o trabalho de vcs por aqui e quando tiver um tempinho da uma olhadinha lá no nosso Instagram.

    1. Olá Marconi, prazer em nos conectarmos por aqui. Que bom ter aqui empreendedores / produtores conscientes do seu papel de transformação. Precisamos conhecer mais histórias como a da Fazenda Mabela! Continue acompanhando as próximas publicações e discussões!

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